terça-feira, 19 de junho de 2012

Um dia o menino feito de trapos foi dar um longo passeio pela Terra e acabou dentro de um enorme bicho vermelho a que chamavam coração. Durante a sua estadia lá, nessa coisa musculosa, ouviu várias vezes dizer que era habitual quebrarem-na em mil pedacinhos. Na altura abriu muito os olhos e não soube entender como era possível machucar esse tal de coração se ele estava tão bem guardadinho, lá dentro do peito, protegido dentro de uma caixa dura. Só mais tarde veio a perceber que a culpa era de um outro bicho, sem cor nem cheiro, chamado amor. Na terra por onde andava a passear, as pessoas pareciam não saber como o usar, devorando-o ou fazendo dele prisioneiro, sempre que o encontravam. Oh se ao menos soubessem como é viver dentro de um miocárdio aleijado! O menino de trapos sabia que chovia muitas vezes, lá, dentro dos adultos que brincam ao sério o tempo todo, e sabia também que eles eram demasiado orgulhosos para o admitir. Um dia chegou mesmo a conversar com um e quase pôde ver-lhe escorregar dos olhos uma gota de água salgada. Pensou para si "Então eles também guardam o mar dentro deles?". Só mais tarde veio a descobrir que aquilo se chamava chorar, e que se chorava sempre que o coração se amarfanhava por causa do amor. 

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Naquela noite doía-me o amor que havia guardado desde os tempos de mocidade, lá debaixo da cama. Doía-me na garganta e dizia-me baixinho que queria ir embora, que não sabia mais como ficar ali junto do pó e das memórias que esqueci e que, portanto, não mais ficaria. Cerrei os olhos com muita força, virei-me para a parede e, deitada no chão, deixei o amor ir. Depois só me lembro de ter acordado com um rasgão no peito e de ter percebido que quando o amor que guardamos debaixo da cama se vai embora, nos leva também o coração.